O dia seguinte, por João Feres Júnior
Ontem durante a votação do impeachment na Câmara dos Deputados ouvi uma analogia interessante: ver aqueles deputados todos votarem de tão perto é como visitar a cozinha de um restaurante; algo não recomendável. Há uma sabedoria profunda aí. Qualquer pessoa com alguns neurônios e um senso moral ficou nauseada com o comportamento da imensa maioria dos representantes do povo. A contração “pelo”, e sua versão feminina, foram de longe as palavras mais usadas em toda interminável sessão. Esse nosso mesmo observador, o ser moral dotado de algum cérebro, esperaria que os nobres deputados dessem razões públicas para seu voto que fossem condizentes com a natureza do que estava sendo apreciado: uma acusação de crime de responsabilidade da presidente da república. Qual o que! Os “pelos e pelas” não significavam “em razão de”, mas simplesmente homenagens prestadas por meio do voto à família, a deus e aos eleitores e regiões da base do deputado. E quando davam razões, elas muito raramente tinham a ver com a natureza da acusação, um crime de responsabilidade relativo à gestão da fazendo pública, mas sim com aspectos do desempenho do poder executivo no que toca a economia ou com a corrupção, matéria estranha à acusação.
Mas a repulsa do que nosso observador fictício sentiu é em parte fruto de sua ingenuidade. Na verdade, cozinhas de restaurantes não são feitas para serem visitadas. Da mesma forma, a Câmara dos Deputados não é um lugar em que cada membro tem igual direito a voz, como vimos ontem à noite. O que causou tanta repulsa é a exposição pública do chamado baixo clero, que são as massas de manobra de cada partido. A Câmara é um espaço muito hierarquizado. As lideranças partidárias decidem quase tudo e o baixo clero geralmente segue as orientações dos líderes. São deputados que têm na manutenção da relação com sua base eleitoral regional seu principal objetivo. Não há muito lugar para grandes temas nacionais, questões morais ou constitucionais profundas. Esses deputados se movem pelo toma-lá-da-cá que é a lógica de suas carreiras políticas.
Isso poderia ser diferente? Poderia. Se os partidos tivessem mais força, mais mecanismos de punição e prêmio, esses deputados cobrariam um preço menor por sua disciplina. Fim das coligações eleitorais para voto proporcional, cláusula de barreira, reforma dos critérios para criação de novos partidos, todos essas medidas contribuiriam para diminuir o “custo” do baixo clero para a política nacional, aumentando assim a disciplina partidária.
Nada disso, contudo, seria garantia de que evitaríamos o que vimos ontem. Isso porque ainda que em parte produto de problemas de desenho institucional, como discutido acima, o espetáculo de ontem é também consequência de erros fragorosos cometidos pelos governos do PT. E eu gostaria aqui de isentar em parte o próprio Partido dos Trabalhadores, pois ser governo para um partido com forte base em movimentos sociais como o PT é verdadeiramente trágico: o governo se constitui em polo independente e desagregador da estrutura partidária, com poder imenso se comparado ao próprio partido. Daí que o partido decide muito pouco, tem poder exíguo perante o próprio governo. Então os responsáveis pelos erros são os próprios governos, Lula e Dilma.
Vou enumerar aqui somente dois pontos fundamentais: a mídia e o tratamento das corporações estatais. Há outros que reservarei para futuros artigos. Após ganhar uma eleição sobre forte campanha midiática de exploração do escândalo do Mensalão, Lula se convenceu de que “a grande mídia não ganha mais eleição nesse país”. As vitórias subsequentes, em 2010 e 2014, sempre sob fogo intenso das grandes empresas de jornalismo, serviram para confirmar essa tese. Resultado: fizeram quase nada para resgatar a comunicação pública de nossa república das mãos dos barões reacionários que a monopolizam há tantas décadas. Organizaram a EBC, recriaram uma TV pública, mas tudo de maneira muito acanhada. É patético assistir aos jornalistas destas mídias públicas tentarem fazer o papel de isentos e neutros, na esperança de suprirem a função que seus colegas das empresas privadas já abandonaram há muito tempo. A TV Brasil parece ter acordado para a necessidade se sair do muro da suposta neutralidade jornalística e comunicar conteúdos que os outros canais simplesmente ignoram. Só que fez isso aos 49 minutos do segundo tempo, quando o placar já estava 7 x 1, contra.
A despeito de seu trânsito entre grupos empresariais de peso no país e no exterior, Lula e Dilma não articularam a criação de empresas de mídia que constituíssem alternativas a isso que está aí. José Dirceu foi um que se enveredou por esse caminho. Mas sua demonização por parte da grande mídia parece ter detido outros líderes: acovardaram-se. Resultado: um clima de opinião totalmente adverso ao governo e ao PT, clima esse ao qual todos os deputados federais são altamente sensíveis. Se há um tipo de gente que fica colado no noticiário, este é o político profissional.
O segundo ponto são a sequência de erros na escolha, de competência da Presidência da República, dos cabeças de grandes corporações estatais como o Ministério Público, Polícia Federal e ministros do Supremo. Lula até hoje se orgulha em público de respeitar as corporações e escolher sempre o primeiro da lista. Dilma seguiu o mesmo caminho. Ao fazerem isso abriram mão do único canal que uma corporação poderosa como o Ministério Público teria de prestar contas ao voto popular. Criaram um monstro que os está engolindo. A coisa chegou a tamanho absurdo que até os advogados públicos federais se organizaram para tentar forçar a presidente a escolher o substituto de Luís Inácio Adams para a Advocacia Geral da União de uma lista tríplice elaborada por eles mesmos. A Polícia Federal também se autonomizou como corporação sob o beneplácito do ex-Ministro da Justiça, cargo indicado por Dilma. Escapou da hierarquia que a submete ao representante da soberania popular para ser capturada por interesses políticos partidários que perderam a eleição, trazendo o conflito político para dentro do Estado.
Por fim, é irônico ver Lula falar, mui corretamente, que o Supremo se acovardou perante os desmandos de Moro, pois a maior parte dos ministros hoje na casa foram escolhidos por ele e por sua sucessora. Não importa saber agora qual o cálculo político que levou a escolha de cada um, mas é inegável constatar que o resultado final é pífio. Moveram somente uma palha contra Moro, que lhes respondeu com um pedido irônico de desculpas, e permitiram que Eduardo Cunha comandasse até o final o espetáculo dantesco a cujo ápice assistimos ontem à noite. Não conseguem defender o estado de direito perante um juiz de primeira instância. Não conseguem defender a república de seu inimigo público mais notório.
Em suma, o povo brasileiro poderia ter sido poupado daquele passeio desagradável pela cozinha do restaurante da democracia. Esse desfecho, ainda que provisório, está longe de ter sido uma consequência necessária da competição política. Ele é fato produzido pela combinação de erros seguidos de avaliação, como é o caso da mídia, e de ações desastradas guiadas por princípios absurdamente equivocados, como o da autonomia das corporações estatais. Agora é esperar que o trauma passe e que o povo não perca de vez o apetite ou vá comer em outro restaurante.
Ontem durante a votação do impeachment na Câmara dos Deputados ouvi uma analogia interessante: ver aqueles deputados todos votarem de tão perto é como visitar a cozinha de um restaurante; algo não recomendável. Há uma sabedoria profunda aí. Qualquer pessoa com alguns neurônios e um senso moral ficou nauseada com o comportamento da imensa maioria dos representantes do povo. A contração “pelo”, e sua versão feminina, foram de longe as palavras mais usadas em toda interminável sessão. Esse nosso mesmo observador, o ser moral dotado de algum cérebro, esperaria que os nobres deputados dessem razões públicas para seu voto que fossem condizentes com a natureza do que estava sendo apreciado: uma acusação de crime de responsabilidade da presidente da república. Qual o que! Os “pelos e pelas” não significavam “em razão de”, mas simplesmente homenagens prestadas por meio do voto à família, a deus e aos eleitores e regiões da base do deputado. E quando davam razões, elas muito raramente tinham a ver com a natureza da acusação, um crime de responsabilidade relativo à gestão da fazendo pública, mas sim com aspectos do desempenho do poder executivo no que toca a economia ou com a corrupção, matéria estranha à acusação.
Mas a repulsa do que nosso observador fictício sentiu é em parte fruto de sua ingenuidade. Na verdade, cozinhas de restaurantes não são feitas para serem visitadas. Da mesma forma, a Câmara dos Deputados não é um lugar em que cada membro tem igual direito a voz, como vimos ontem à noite. O que causou tanta repulsa é a exposição pública do chamado baixo clero, que são as massas de manobra de cada partido. A Câmara é um espaço muito hierarquizado. As lideranças partidárias decidem quase tudo e o baixo clero geralmente segue as orientações dos líderes. São deputados que têm na manutenção da relação com sua base eleitoral regional seu principal objetivo. Não há muito lugar para grandes temas nacionais, questões morais ou constitucionais profundas. Esses deputados se movem pelo toma-lá-da-cá que é a lógica de suas carreiras políticas.
Isso poderia ser diferente? Poderia. Se os partidos tivessem mais força, mais mecanismos de punição e prêmio, esses deputados cobrariam um preço menor por sua disciplina. Fim das coligações eleitorais para voto proporcional, cláusula de barreira, reforma dos critérios para criação de novos partidos, todos essas medidas contribuiriam para diminuir o “custo” do baixo clero para a política nacional, aumentando assim a disciplina partidária.
Nada disso, contudo, seria garantia de que evitaríamos o que vimos ontem. Isso porque ainda que em parte produto de problemas de desenho institucional, como discutido acima, o espetáculo de ontem é também consequência de erros fragorosos cometidos pelos governos do PT. E eu gostaria aqui de isentar em parte o próprio Partido dos Trabalhadores, pois ser governo para um partido com forte base em movimentos sociais como o PT é verdadeiramente trágico: o governo se constitui em polo independente e desagregador da estrutura partidária, com poder imenso se comparado ao próprio partido. Daí que o partido decide muito pouco, tem poder exíguo perante o próprio governo. Então os responsáveis pelos erros são os próprios governos, Lula e Dilma.
Vou enumerar aqui somente dois pontos fundamentais: a mídia e o tratamento das corporações estatais. Há outros que reservarei para futuros artigos. Após ganhar uma eleição sobre forte campanha midiática de exploração do escândalo do Mensalão, Lula se convenceu de que “a grande mídia não ganha mais eleição nesse país”. As vitórias subsequentes, em 2010 e 2014, sempre sob fogo intenso das grandes empresas de jornalismo, serviram para confirmar essa tese. Resultado: fizeram quase nada para resgatar a comunicação pública de nossa república das mãos dos barões reacionários que a monopolizam há tantas décadas. Organizaram a EBC, recriaram uma TV pública, mas tudo de maneira muito acanhada. É patético assistir aos jornalistas destas mídias públicas tentarem fazer o papel de isentos e neutros, na esperança de suprirem a função que seus colegas das empresas privadas já abandonaram há muito tempo. A TV Brasil parece ter acordado para a necessidade se sair do muro da suposta neutralidade jornalística e comunicar conteúdos que os outros canais simplesmente ignoram. Só que fez isso aos 49 minutos do segundo tempo, quando o placar já estava 7 x 1, contra.
A despeito de seu trânsito entre grupos empresariais de peso no país e no exterior, Lula e Dilma não articularam a criação de empresas de mídia que constituíssem alternativas a isso que está aí. José Dirceu foi um que se enveredou por esse caminho. Mas sua demonização por parte da grande mídia parece ter detido outros líderes: acovardaram-se. Resultado: um clima de opinião totalmente adverso ao governo e ao PT, clima esse ao qual todos os deputados federais são altamente sensíveis. Se há um tipo de gente que fica colado no noticiário, este é o político profissional.
O segundo ponto são a sequência de erros na escolha, de competência da Presidência da República, dos cabeças de grandes corporações estatais como o Ministério Público, Polícia Federal e ministros do Supremo. Lula até hoje se orgulha em público de respeitar as corporações e escolher sempre o primeiro da lista. Dilma seguiu o mesmo caminho. Ao fazerem isso abriram mão do único canal que uma corporação poderosa como o Ministério Público teria de prestar contas ao voto popular. Criaram um monstro que os está engolindo. A coisa chegou a tamanho absurdo que até os advogados públicos federais se organizaram para tentar forçar a presidente a escolher o substituto de Luís Inácio Adams para a Advocacia Geral da União de uma lista tríplice elaborada por eles mesmos. A Polícia Federal também se autonomizou como corporação sob o beneplácito do ex-Ministro da Justiça, cargo indicado por Dilma. Escapou da hierarquia que a submete ao representante da soberania popular para ser capturada por interesses políticos partidários que perderam a eleição, trazendo o conflito político para dentro do Estado.
Por fim, é irônico ver Lula falar, mui corretamente, que o Supremo se acovardou perante os desmandos de Moro, pois a maior parte dos ministros hoje na casa foram escolhidos por ele e por sua sucessora. Não importa saber agora qual o cálculo político que levou a escolha de cada um, mas é inegável constatar que o resultado final é pífio. Moveram somente uma palha contra Moro, que lhes respondeu com um pedido irônico de desculpas, e permitiram que Eduardo Cunha comandasse até o final o espetáculo dantesco a cujo ápice assistimos ontem à noite. Não conseguem defender o estado de direito perante um juiz de primeira instância. Não conseguem defender a república de seu inimigo público mais notório.
Em suma, o povo brasileiro poderia ter sido poupado daquele passeio desagradável pela cozinha do restaurante da democracia. Esse desfecho, ainda que provisório, está longe de ter sido uma consequência necessária da competição política. Ele é fato produzido pela combinação de erros seguidos de avaliação, como é o caso da mídia, e de ações desastradas guiadas por princípios absurdamente equivocados, como o da autonomia das corporações estatais. Agora é esperar que o trauma passe e que o povo não perca de vez o apetite ou vá comer em outro restaurante.
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